Criada para barrar a corrupção entre empresas e órgãos públicos, a Lei Anticorrupção, que entra em vigor no próximo dia 29 de janeiro, exige uma postura mais ética de todos envolvidos em contratação e prestação de serviços públicos.
“Nós estamos precisando de uma reviravolta de foco, de gestão e de comportamento para que a gente possa transformar o que hoje é círculo vicioso de corrupção em círculo virtuoso de probidade”, afirmou,em entrevista ao MidiaNews, o promotor de Justiça Gilberto Gomes.
Gomes atua no Núcleo de Defesa do Patrimônio Público e da Probidade Administrativa, do Ministério Público do Estado (MPE). Discreto, apesar da firme atuação, e avesso às aparições na imprensa, o promotor tem vasta experiência na Defesa do Patrimônio da Administração Pública.
O grande entrave para aplicação da lei, segundo ele, seria a falta de estrutura para investigar casos de corrupção. Além do excesso de “pressão política”, em cima dos profissionais.
“Não há como deixar de reconhecer que a pressão política é grande, mesmo sob aquele gestor que não queira se vincular e queira ter independência”, ponderou.
Ericksen Vital/MidiaNews |
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Para ele, o “grande canal de corrupção” no Governo do Estado são as áreas de contratações, sejam diretas ou por processos licitatórios. Disse também que o comportamento ético também deve ser exigido do eleitor. Quem vota mal, afirma o promotor, “não é vítima, é cúmplice”.
O promotor é taxativo quanto à aplicação da lei. “Eu vejo uma certa dificuldade na aplicação rápida”, afirmou.
Gilberto Gomes considerou interessante a legislação trazer uma multa pesada as empresas corruptas. A lei prevê multa de até 20% do faturamento bruto anual da instituição.
O promotor também não poupou criticas ao Poder Judiciário, que, na visão dele, tem se preocupado com o formalismo em detrimento da comprovação do ato corrupto. “É preciso uma mudança de todos os atores do processo: do eleitor, do administrador publico e do julgador”.
Leia as principais trechos da entrevista:
MidiaNews - A Lei Anticorrupção nº 12.846 entra em vigor no dia 29 de janeiro no Brasil. O que ela traz de novidades?
"O que ela traz de novo seria a previsão de uma responsabilização objetiva das empresas ou pessoas jurídicas. Significa dizer que a punição atingiria independente de culpa"
Gilberto Gomes - A lei foi instituída no Brasil por uma pressão de organismos internacionais. Até, porque, os países desenvolvidos têm leis que penalizam as pessoas jurídicas que pratiquem atos de corrupção. O nosso país, porém, vinha retardando a edição dessa lei. O que ela traz de novo seria a previsão de uma responsabilização objetiva das empresas ou pessoas jurídicas. Significa dizer que a punição atingiria independente de culpa. Ainda que não fique comprovado que os seus gestores corromperam alguém, mas, tão somente que a empresa se beneficiou, causou dano ao erário público, então esta poderá ser responsabilizada administrativamente.
MidiaNews - Como a empresa pode ser punida?
Gilberto Gomes - Na esfera administrativa, apurada que houve uma corrupção e que ela se beneficiou, o dano causado deve ser ressarcido. Provavelmente, a empresa sofrerá uma sanção de multa, que pode ser de 0,1% do faturamento bruto relacionado ao ano anterior até 20%, mas nunca inferior ao dano causado.
MidiaNews - A lei pode ser considerada um avanço?
Gilberto Gomes - Nessa questão responsabilização administrativa, onde o próprio governo vai apurar, diria que ela não é bem uma novidade. Isso porque a Lei de Improbidade Administrativa, quando ela foi editada na década de 90, ela já previa uma investigação administrativa. Por exemplo, em caso de uma fraude em concurso.
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Promotor Gilberto Gomes: acredita em pressão política |
MidiaNews - O poder público está preparado para apurar a corrupção internamente?
Gilberto Gomes - Essa lei traz inovação, que é a apuração no modo administrativo, o que seria extraordinário se funcionasse. Mas isso precisa, a meu ver, que a própria administração publica se reavalie e se reestruture. Sem fazer uma crítica generaliza, o que nós vemos hoje é que a administração pública de um modo geral não está preparada e instrumentalizada para isso. Penso eu que a politização do Poder Executivo acaba comprometendo um pouco a capacidade investigativa e apurativa. O ideal seria que nas secretarias os cargos fossem ocupados por técnicos, com alguma independência. Mas o que vemos hoje no Brasil interior é que o comando dos principais órgãos são entregues em razão de acordos políticos. Aí eu pergunto: até onde as autoridades terão isenção para investigar um ato de corrupção que envolvesse, digamos, um correligionário ou uma empresa amiga?. E até onde eles conseguiram apurar isso em relação a um adversário político.
MidiaNews - Então o senhor acredita que, mesmo com essa lei, faltaria isenção plena aos funcionários públicos?
Gilberto Gomes - Eu creio que veria muita dificuldade da aplicação dela no geral. É óbvio que existam pessoas éticas na administração e não são poucas. Mas não há como deixar de reconhecer que a pressão política, mesmo sob aquele gestor que não queira se vincular e queira ter independência, é muito grande. Um gestor, por exemplo, que mande abrir um procedimento para apurar um ato que envolva pessoas jurídicas influentes. Mesmo que ele não ceda, ele pode perder o cargo e não fazer aquilo que era para fazer. Eu vejo uma certa dificuldade na aplicação rápida da lei. Críticos afirmam que possam existir casos com sanções gravíssimas e outros que não nem chegarão a ser apurados. Hoje esse é o retrato e ninguém, em sã consciência, vai dizer que é o contrário.
MidiaNews - A cultura de governo e do empresariado tem que mudar?
Gilberto Gomes - Sim. E eu diria mais: da própria população. Do eleitor que vai escolher os políticos.Tem que ter responsabilidade. Quem vota mal, sabendo que esta votando mal, porque espera que esse indivíduo venha fazer um favor específico depois, ele não é vítima. É cúmplice
"Tem que ter responsabilidade. Quem vota mal, sabendo que esta votando mal, porque espera que esse indivíduo venha fazer um favor específico depois, ele não é vítima. É cúmplice"
. O que ele pode exigir de alguém em termo de moralidade e de probidade?. Nenhuma. As instituições terão que se estruturar um pouco para que se consiga dar uma resposta efetiva à sociedade.
MidiaNews - E quanto às empresas. O que pode acontecer com elas?
Gilberto Gomes - Comprova-se que empresa reintera nessas praticas de corrupção ou se ela foi constituída para esse fim, pode haver a desconsideração da personalidade jurídica. Que significa que todos os sócios responderão com a forca do seu patrimônio igualmente. Na lei consta a criação da “compliance” (sigla inglês)?
MidiaNews - O que é isso representa e como funcionaria?
Gilberto Gomes - São procedimentos de controle e fiscalização de prática, ilícitas e antiéticas, dentro da empresa. A importância maior é quando se fala de uma empresa de grande porte, como uma mega construtora ou distribuidora de petróleo, do Rio de janeiro, por exemplo. Os diretores não sabem o que o gerente de área esta fazendo aqui em Mato Grosso. Então, por alguma razão, o gerente pratica atos de corrupção no estado sem o conhecimento da matriz. Neste contexto, a lei incentiva que nos casos das empresas que tem o compliance, que impedem esse tipo de conduta dos diretores de filiais, a empresa pode ter sanções reduzidas.
MidiaNews - E os acordos de leniência, aqueles que beneficiam quem “entregar o esquema”. Funcionam? É uma boa previsão legal?
Gilberto Gomes - Essa é outra novidade que a lei expõe. O acordo de leniência é semelhante à delação premiada utilizada no crime. Para obter o acordo, porém, existem alguns requisitos. Entre eles, a empresa tem que ser a primeira a delatar e colaborar com as investigações. Mas não somente isso. Para que ela possa ser contemplada pelo acordo, a empresa tem que colaborar o tempo todo com as investigações e as informações têm que ser eficazes de forma a acelerar o procedimento. Ou seja, a lei prevê que a pessoa jurídica que firma o acordo de leniência tem que repassar informações eficazes.
MidiaNews - Críticos dizem que essa lei muda o foco dos corruptos para os corruptores?
Gilberto Gomes - Já vi comentários a respeito disso. Mas eu não vejo assim, porque legislação para os corruptos já existem, que é a lei de improbidade administrativa. Ela já alcança as pessoas físicas, não só servidores mas também as pessoas que corromperam. O que ela não previa era uma responsabilidade objetiva para pessoa jurídica, no sentido de multa, por exemplo. Embora, ela já previa o ressarcimento integral do dano. A novidade dessa lei seria a possibilidade de abrir um procedimento administrativo que deveria ser célere, com publicação, multa e a reparação do dano. Isso poderia, se bem aplicado, obrigar as instituições a se estruturem para isso.
MidiaNews - A nova lei vai exigir essa postura, de fato, ética de empresários, governo e da sociedade?
Gilberto Gomes - Vai depender do quanto às administrações desejarem e se empenharem fazer essa lei funcionar de verdade. Penso eu, que o incentivo da pratica honestas virá na medida da eficiência da aplicação da norma. Nós poderíamos pensar que a lei vai começar a tratar com eficácia essas situações, então ela vai servir como um preventivo e um desincentivo a prática de corrupção. Mas se a lei não pegar, como dizem, eu vejo que nada vai mudar. Devemos trabalhar para que ela seja aplicada de fato.
MidiaNews - O que a lei muda na atuação na área judicial?
Gilberto Gomes - Contempla a responsabilização judicial. Na qual ela permite a atuação da própria advocacia publica, que seria, por exemplo, a Controladoria Geral da União, em nível federal. Permite que esses representantes jurídicos intentem a ação. A lei diz que a ação judicial pode buscar o perdimento de bens que foram acrescidos em razão do ato e a proibição de receber incentivos (isso a lei de improbidade previa). Chegam como novidade a real possibilidade de dissolução compulsória da pessoa jurídica (punição mais grave) e a suspensão ou interdição parcial das atividades da empresa. Isso pode ser pedido em ação tanto pelo Ministério Publico como pela advocacia pública representante do órgão em conflito com a lei. Em principio, não há conflito entre os órgãos. Quem faz ajuizamento primeiro é o titular.
MidiaNews - Essas instituições deveriam lidar somente com a parte judicial?
"Se o Poder Judiciário for rigoroso, vou ter que entrar com uma ação judicial de responsabilização (que a lei prevê) e, ao mesmo tempo, comprovar o ato lesivo. Isso gera uma dificuldade procedimental"
Gilberto Gomes - Nas ações do Ministério Público, também poderão ser aplicadas as sanções administrativas, previstas lá atrás, desde que constatadas que a autoridade se omitiu. Veja que dificuldade. Vamos ter que fazer duas provas no processo. Uma de que a autoridade se omitiu. O que não é fácil. Porque o MP abriria uma nova investigação. Teria que fazer um retrabalho. Teríamos que aguardar prazo de 180 para aí tentar comprovar omissão... Se o Poder Judiciário for rigoroso, vou ter que entrar com uma ação judicial de responsabilização (que a lei prevê) e, ao mesmo tempo, comprovar o ato lesivo. Isso gera uma dificuldade procedimental. Não sei como isso tudo vai conviver. De repente estou com tudo demonstrado, então vou entrar na Justiça, aí eu vou entrar pedindo multa administrativa ou não?. Isso é uma questão que vai ter que ser resolvida, quando a Doutrina vai se manifestar.
MidiaNews - Governo do Estado e municípios, em Mato Grosso, terão que fazer o que para essa lei trazer resultados?
Gilberto Gomes - Creio que o Estado e os municípios vão ter que se dedicar a essa lei. Acredito que eles têm muito trabalho a fazer. Mas a nova lei poderia ajudar muito o combate à corrupção. Se eles atuarem com rigor e eficácia na aplicação dela, e criassem estrutura para isso, seria fantástico. Reduziria muito os casos de corrupção. Uma coisa é certa: muitos atos de corrupção se estabilizam em determinado patamar e não chegam lá cima. E às vezes os gestores têm dificuldade de apuração. O estado deveria se concentrar nisso. Tenho convicção que o estado vai ter que se reinventar. O que seria extremamente benéfico. Acho que nós estamos precisando de uma reviravolta de foco, de gestão e de comportamento para que a gente possa transformar o que hoje é circulo vicioso de corrupção em circulo virtuoso de probidade.
MidiaNews - Nesta semana a lei entra em vigor, o Estado de Mato Grosso já tem estrutura para fazer cumprir essa lei?
Gilberto Gomes - Na minha opinião, não. O estado precisa fazer um estudo sobre o que deve ser feito. Eu não tenho condições de dizer quais são medidas que o estado tem que tomar. Mas o estado tem estrutura que poderia se adequar para isso. Existe a Corregedoria-Geral, a Auditoria Geral do Estado, a Procuradoria-Geral. Enfim, todas as instituições que atuam no campo jurídico. Elas têm pessoas de grande competência indiscutível. Conheço vários deles. Eu diria que tem pessoas de autovalor moral, que prezam pela coisa pública. O estado precisaria pegar essas pessoas e montar uma estrutura adequada. Mas é preciso que se dê aos profissionais mais autonomia, estabilidade e liberdade para essas pessoas poderem trabalhar sem pressões políticas. Tem que ter liberdade para atuar.
MidiaNews - Na pratica, que tipo de atos de corrupção ela impediria. Você consegue visualizar?
Gilberto Gomes - A lei pode contribuir para todas as áreas. Atualmente, não tenho a menor dúvida que as áreas mais sensíveis à corrupção são as de contratações, que envolve os procedimentos licitatórios e as contratações diretas. Esse é hoje o grande canal de corrupção. Existem outras, mas as contratações de serviços, matérias e obras são as sensíveis. A lei foi feita para isso. Penso que poderia ter mais visibilidade nessa área.
MidiaNews - A lei valoriza a imagem brasileira no cenário internacional?
Ericksen Vital/MidiaNews |
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Gilberto Gomes - Na verdade, a lei nossa é até mais rigorosa que a Norte-Americana, porque trabalha uma multa alta e a estrangeira não fixa o valor da multa. Deixa tudo a critério do julgador. Esse combate à corrupção envolvendo as empresas e a administração publica é um movimento mundial. Tecnicamente essa lei não alcança somente o Brasil. Uma novidade interessante, certamente um dos pontos de exigência dos tratados internacionais, é que essa lei não alcança apenas a administração publica nacional, mas também a internacional. Por exemplo, se a corrupção envolver um órgão estrangeiro sediado no Brasil. A lei deve alcançar inclusive até atos de brasileiros praticados no exterior.
MidiaNews - Na opinião do senhor, o que deveria ser feito para realmente extirpar a corrupção?
Gilberto Gomes - Todos os atores do processo têm que mudar um pouco. Penso que começa pela nossa capacidade de eleger melhores administradores públicos. Depois, uma politização melhor da população para cobrar mais moralidade, porque nós sabemos que, quando o povo se manifesta, as coisas mudam.
MidiaNews - E o Poder Judiciário está preparado para enfrentar as mudanças que estão por vir?
Gilberto Gomes - Nós temos avançado no Poder Judiciário, mas acho que no Brasil existe um excessivo zelo na exigência de uma prova cabal de um ato de corrupção, mesmo quando as circunstâncias todas indicam o contrário. Diria que é preciso focar um pouco mais no interesse publico. A gente cansa de ver decisões, judiciais e administrativas, com excessivo apego ao formalismo. Quer dizer, você tem totalmente demonstrado uma culpa, um dolo, um dano, atos antiéticos e improbos, mas aí se anula todo um processo por deixar de mencionar algo. Em diria que as decisões que se apegam demais ao formalismo processual são meio complicadas. É preciso uma mudança de todos os atores do processo: do eleitor, do administrador publico e do julgador.
MidiaNews - Mato Grosso tem elevados índices de corrupção?
Gilberto Gomes - Nós não temos como fazer uma comparação com outros estados. Mas hoje o Estado perde muito por causa dos atos de corrupção. Mas a ineficiência administrativa também prejudica. Muitas dessas práticas trazem prejuízo ao erário. Vemos que existem atos de favorecimento. A gente cansa de ver: o estado faz uma contratação publica, solta obra, a empresa executa, mas não recebe do estado. Essa inadimplência pode ter origem no planejamento. Sempre digo o seguinte: o estado precisa dar exemplo. Pagar bem, em dia, cobrar qualidade do serviço para que ele comprar bem. As empresas vivem de lucro. Então quando ela vai fazer uma venda, ela vai avaliar os riscos. Na medida em que se afasta a concorrência eficiente, então você entrega essas obras e serviços àqueles que se dispõe a tolerar um atraso. Então, temos dois custos, o da corrupção e o da inadimplência.