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Nacional
Quinta - 27 de Fevereiro de 2014 às 15:28
Por: Adamastor Martins de Oliveira

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arquivo pessoal
Grace Kelly, a assessora mara do Asa de Águia, que nos encantou com sua história
Grace Kelly, a assessora mara do Asa de Águia, que nos encantou com sua história

“Nunca vou esquecer daquele dia, em 1991. Estava preparada para estudar em Londres, quando fui barrada na imigração ao chegar lá. O motivo? Eu não parecia confiável para a polícia federal. Não foi falado com essas palavras, mas ficou bem claro isso. Tudo bem, voltei para casa, frustrada como qualquer garota de 23 anos que tem seu sonho interrompido. Semanas depois, acompanhei uma amiga que foi deixar o marido no trabalho, aqui em Salvador. Na volta, quando estávamos apenas Joyce e eu, não sei como, mas ela perdeu o domínio da direção numa curva. Resultado: caímos num abismo de 12 metros. Ela não resistiu e morreu.

O choque foi tão grande de perder minha melhor amiga, que comecei a desenvolver uma doença que paralisava todos os músculos do meu corpo. Não conseguia sequer ficar de pé. Até quando ia ao banheiro, tinha que deixar a porta aberta para alguém me puxar, porque sozinha não dava. Era dermatomiosite. Quando fiz os exames e o médico confirmou, fui de imediato para São Paulo, onde fiz tratamento por um ano e meio no Hospital das Clínicas. Sabe o que é mais interessante? Eu descobri que o que eu tinha não era nada, agradeci a Deus por eu estar tão mais saudável do que outras pessoas, que eu via em estágios bem delicados de doenças terminais. Tive momentos sérios, em que não aguentava sequer ficar parada na fila de espera dos medicamentos, de tão fraca que me sentia. A dermatomiosite pode causar parada respiratória e os músculos do meu pulmão ficaram bem fracos, o que dificultava minha respiração. Você não tem ideia do que é essa sensação, só sabe quem passa. Porém, nada é comparado ao que aquelas pessoas em estágios terminais passavam. Quando a gente passa por isso, começa a valorizar mais a própria vida.

Com amigos da banda em bastidores de um show (Foto: arquivo pessoal)


E sabe o que me deu força? Saber o quanto tinha amigos especiais. Durante todo o tempo em que estive em São Paulo, passava 15 dias na casa de um, 15 na casa de outro, para não sobrecarregar ninguém. Todos me recebiam tão bem, nunca vou esquecer. Lembro que meu médico me ajudava a fazer alguns movimentos e eu perguntei: ‘Doutor, não quer me ensinar isso pra eu fazer em casa?’. A resposta dele foi: ‘Grace, vamos combinar algo? Aqui dentro, eu lhe ajudo, sou seu médico e faço o que for. Mas quando você sair pela porta do meu consultório, vai deixar a dermatomiosite aqui e viver sua vida lá fora. Ok?’. Foi o que fiz. Daquele dia em diante, resolvi voltar a viver.”

Raspa a cabeça, sacode a poeira e...dá a volta por cima!
“Ao fim do tratamento, voltei para Salvador e retomei os trabalhos no Carnaval. Engraçado que eu não tinha noção do quanto eu me destacava naquilo. Enquanto umas pessoas vendiam 50, 100 abadás, eu vendia 600, 700. Isso resultou na minha careca. Eu tinha uma semana para vender mil abadas, o que para mim parecia impossível. Como sempre fui muito exotérica, holística, me peguei com meus santos e fiz uma promessa: ‘se eu conseguir, raspo minha cabeça’. Nunca achei que fosse possível. Mas, por incrível que pareça, quando me dei conta já tinha vendido 998, dos mil que precisava. Não pensei duas vezes: passei a máquina no cabelo inteiro. E, posso ser sincera? Se eu soubesse que a careca me caía tão bem, teria raspado antes. Minha mãe dizia que eu tinha um cabeção quando nasci e de início ficou passada com o que viu, mas no segundo dia me disse que eu ficava linda careca. Todo mundo ficou chocado, claro, o que não importava. Eu gostava tanto que não estava nem aí! Um tempo depois entrei no Asa de Águia, nessa parte da venda dos blocos. Quando me formei em jornalismo, fui promovida a assessora de imprensa deles, onde estou até hoje, após 20 anos.”


"O Brasil é o país do preconceito. Qual o problema em ser gorda e careca, afinal" (Foto: arquivo pessoal)

Pra quê cabelo?
“Nunca mais quis ter cabelo, se tivesse um produto que fizesse com que os fios nunca mais crescessem, eu adoraria. E olha, não foi fácil. O preconceito é uma coisa absurda. No Brasil então, nossa! Isso aqui é o país do preconceito, com os gringos nem parecia que eu era careca. Lembro de entrar no shopping e parar tudo. As pessoas me olhavam com uma compaixão, uma pena de mim, que me deixava chocada. Sorte que eu nunca liguei para isso. Passei por cenas engraçadas também. Lembro de estar em São Paulo e ir assistir o programa da Hebe na primeira fila, logo que ela começou a usar peruca por causa do câncer. Quando ela entrou, que distribuiu rosas para a plateia, parou em mim e disse ‘eu estou como você, qual é o seu tipo de câncer?’. Eu respondi para ela que não tinha câncer, que era careca porque gostava. A reação dela, sempre tão espontânea, você já pode imaginar, né? ‘O quêêê? Como assim você gosta de ser careca? Não, eu não consigo acreditar nisso’. Eu reagi dizendo que não me trocava por muitas cabeludas. Ao que ela, sempre divertida, mandou parar tudo, foi pro sofá e fez aquela carinha de choro: ‘ela não gosta de mim’ (risos).

Me adaptei à reação das pessoas, sabe? Uma semana atrás estava no aeroporto de Recife e um cara chegou e disse: ‘eu também tenho essa doença. Só que a minha está mais avançada. Lhe desejo tudo de melhor, tá?’. Eu só consegui agradecer. As pessoas se compadecem tanto que, como me desejam coisas boas, eu não tenho nem coragem de dizer que não é câncer. Energia boa é bem-vinda, seja na circunstância que for. Mas isso mostra o quanto o brasileiro não tem costume de nada que fuja do óbvio, né? Eu sempre odiei mesmice. Tinha que usar corte chanel pois sofria com alopecia e não podia deixar o cabelo muito grande, porque caía. Aquilo me irritava de tal forma... Há quem diga que não tem nada mais da mesmice do que ser careca. Eu discordo. Você pode abusar do seu rosto com maquiagem, destacar a parte que quiser, até mesmo colar coisas na sua careca. É como eu disse pra Hebe: não me troco por nenhuma cabeluda.”

“Me acho bonita assim. É o que importa”
“Tinha um namorado que vivia me pedindo para deixar o cabelo crescer de novo. De tanto ele encher meu saco, coloquei um megahair. Tempos depois, quando já estava com outro namorado, vivia falando que ia raspar a cabeça de novo. Ele ate apoiava, porque sabia do meu histórico e que a careca era parte de mim. Certo dia, quando estava num show em Goiana, não aguentei o calor e fui num salão perto da sede do bloco do Asa de Águia. Quem disse que o cabeleireiro queria raspar minha cabeça? Só o convenci depois de muito tempo.

Quando voltei pra sede, esse meu novo namorado apareceu lá. Ficou claramente chocado quando me viu e foi embora pro hotel. Até a secretária percebeu. Eu apenas pensei: ‘ué, ele é surdo e eu gosto dele como é. Se não aceitar minha careca, é hoje mesmo que eu acabo o relacionamento’. Fui ao encontro dele, que disse que eu era a mulher mais linda que já viu e que gostava de mim como eu era. Hoje estou solteira e vivo bem assim. Mas, o mais importante: sempre me achei bonita, inclusive com a careca. Não gosto de ser gorda e travo uma luta com a balança desde a época que tomei corticoides pra dermatomiosite. Além disso, tomo remédios para tireoide e faço reposição hormonal, porque como tomei medicamentos muito fortes na época do tratamento, entrei na menopausa rápido demais. No entanto, me aceito como sou. Mesmo tentando emagrecer, gosto de mim assim. É o que importa. Sim, sou gorda, careca e feliz. Qual é o problema nisso?”.

"Me sinto bonita, apesar de travar uma luta contra a balança. Mas gosto de mim como sou" (Foto: arquivo pessoal)

Águas passadas e vida futura
“Há 10 anos a dermatomiosite está controlada. Tive duas recaídas ao longo do tempo: uma quando meu pai morreu e outra quando briguei com um grande amigo. Mas como sabia dos sintomas e que não posso ter emoções tão tensas, quando começava já recorria aos remédios pra não cair novamente. Hoje levo tudo numa boa, nada de recaídas. A gente passa o ano inteiro viajando nas festas do Asa, é um trabalho árduo. Em épocas de Carnaval, além do trabalho de preparação, somente no trio eu passo seis horas seguidas de pé, de um lado pra outro, resolvendo tudo. E nada disso me faz ter recaída. Dermatomiosite é uma doença autoimune, sem cura. Mas é possível estagnar. Foi o que fiz. Hoje a doença é água passada.

Para completar minha felicidade, chegou o momento de dar início a uma nova fase: esse é meu último Carnaval com o Asa de Águia. Após 20 anos com a banda, estou saindo para seguir outro rumo. Em março vou para Orlando aperfeiçoar o inglês e depois fazer uma especialização na minha área. Exatamente 23 anos após ser ‘barrada’ no aeroporto. O sonho interrompido agora ganhou outras formas. Vou em grande estilo, aos 46 anos, depois de ter passado por tanta coisa. É o que me faz crer que tudo que você sonhar, pode se tornar realidade. Parece clichê, mas é a pura verdade”.






Fonte: Revista Glamour

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